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Um mês sem Pitito: Uma reflexão necessária sobre violência policial no Amapá

Por José Roberto Pantoja

A banalização da vida humana coincide com o agigantamento da maldade, fruto de uma sociedade cada vez menos tolerante, sem empatia e sem esperança. Quantos pensam que o homem, muitas vezes menino, que delinque, mata, estupra ou rouba é apenas e tão somente um infrator, quando na verdade se trata de um ser humano como qualquer um que poderia estar lendo este texto. Isso quer dizer que a delinquência não é uma condição essencial e permanente do ser humano, pelo contrário, é transitória.

Que sentido teria falar em ressocialização, se não acreditássemos que o ser humano que comete um delito, pode se recuperar e voltar a conviver em sociedade? Quem disse que a eliminação do criminoso, acaba com a criminalidade? Por quê a criminalidade tem que ser vista apenas como aqueles atos delituosos cometidos por pessoas pobres, negras e em severas condições de vulnerabilidade social?

Se todos esses questionamentos fossem respondidos na perspectiva do oprimido e não na perspectiva do opressor, veríamos que a violência policial nada mais é do que o aparato do Estado que, incapaz de promover equidade e justiça social, elege alguns “bandidos” como responsáveis pela desagregação social, os quais devem ser banidos da sociedade com o encarceramento, ou mesmo eliminados, por meio de execuções em casos latentes de abuso policial, para assim os problemas sociais serem resolvidos na aparência e não na essência.

Ocorre que, se achamos repugnante que indivíduos marginalizados paguem pelos problemas estruturais da sociedade, imaginemos quando esses indivíduos nada fizeram para merecer tão dura reação do Estado que, sem investir adequadamente em Segurança Pública, sobrevive de operações que transmitem uma ilusória sensação de segurança à população, às custas do sofrimento alheio. Não obstante, impregnado no imaginário social de que o certo está sendo feito, a sociedade ainda aplaude, pois a morte do bandido ou do suposto bandido ressoa como a ação do Estado para proteger o cidadão de bem e diminuir a criminalidade.

É oportuno chamar a atenção para a recente ocorrência no Rio de Janeiro, em uma ação da Polícia Federal, com a participação da Polícia Militar, que vitimou João Pedro, um menino de 14 anos, morto dentro de casa, brincando com os amigos, que se tornou bandido para justificar o erro, ou o abuso, cometido pela polícia. Um menino que vira estatística, mas não funciona para a família, para os amigos e para todos que o amavam como mera estatística, como se pode ver no depoimento do pai do menino: “Tiraram o sonho do meu filho e da minha família”.

O Pitito tinha apenas 25 anos, uma família, muitos amigos, muitos sonhos. Mas não queremos falar apenas dele, mas de todos que foram vítimas da violência policial e que não tiveram sequer possibilidades de lutar por justiça para si e para outrem. Foram silenciados pela repressão do Estado, que cala vozes, que cala testemunhas, que oculta fatos, os quais poderiam ser reveladores de tamanha injustiça, incomensurável abuso e transgressão da Lei, fazendo valer a propalada narrativa do confronto.

A narrativa do confronto serve para fugir do princípio da legalidade, encontrando guarida na excludente de ilicitude da legítima defesa, ou seja, a polícia atirou para repelir a injusta agressão. Ocorre que, estudos mostram que a construção pós-execução é sempre eivada de mistérios, múltiplas versões e muita repressão àqueles que ousam discordar da dita narrativa oficial, que é sempre a mesma: para averiguar denúncia a polícia perseguiu o suspeito que, para não se entregar, atirou contra a polícia, a qual, tendo que revidar para repelir à injusta agressão, acabou por atingir o suspeito que foi a óbito no local.

Na ânsia de construir a narrativa que ecoa no seio da sociedade como uma benfeitoria para a paz social, destroem reputações, tornando-o bandido, mesmo que seja inocente. Há que se acrescentar que, mesmo quando se trata de vítimas que cometeram algum delito, a punição com a morte é completamente desproporcional ao delito, destruindo possibilidades de ressocialização, dos sonhos de quem morre, dos sonhos de quem fica com a dor da perda que acaba por deixar a vida em suspensão.

Clamar por justiça, não trará a pessoa de volta, tampouco aplacará a dor que dilacera o peito de familiares e amigos, mas deve servir como construção eficaz de punir os criminosos, travestidos de justiceiros, para que entendam o papel fundamental de proteger a sociedade e o ordenamento jurídico brasileiro, afinal não há em nenhum dispositivo legal no Brasil, a previsão da pena de morte, senão em tempos de guerra e em crime específico. Assim, a reflexão se projeta para que a forma de procedimento da polícia, em suas abordagens, mude e com isso outros seres humanos não venham a sentir a dor de quem se foi e da forma como se foi.

Um estudo realizado no Estado de São Paulo, descreve o enredo de uma intervenção letal da Polícia Militar que começa com um homem jovem e negro suspeito do crime de roubo nas ruas da capital paulista. A PM sai em perseguição e, quando o encontra, os policiais são supostamente recebidos a tiros. Os PMs então “revidam a injusta agressão”, no jargão dos boletins de ocorrência – ou seja, atiram de volta. E são certeiros: poucos personagens dessa história sobrevivem. Algo importante revelado pelo estudo diz respeito as supostas armas das vítimas da PM que costumam ser de baixo calibre: apenas seis entre as 271 supostamente apreendidas eram de alta potência, como fuzis ou escopetas. Levantou também que as intervenções ocorrem principalmente em locais afastados do centro expandido, região que concentra as áreas mais nobres de São Paulo.

No estudo em questão, que analisa 330 ocorrências de intervenção policial, constatou-se a ocorrência da morte de 396 civis, mas nenhuma morte de policiais, o que põe em dúvida a narrativa do confronto. Como se não bastasse, o mesmo estudo faz referência à quantidade considerável de inquéritos arquivados, de maneira que em muitos casos, os agressores sequer chegam a ser processados.

As obscuridades que envolvem tais acontecimentos são incompatíveis com uma sociedade civilizada, construída sob a égide do Estado Democrático de Direito, de maneira que não se pode conceber retrocessos que mais se aproximam da época dos tempos sombrios do período da Ditadura, do que colaboram com a construção de uma sociedade mais justa, transparente e verdadeiramente democrática.

Nesse contexto, alguns apontamentos merecem destaque, pois com o advento da Lei de Anistia de 1978 e a abertura política posterior à promulgação desta, efetiva-se a transição democrática brasileira na década de 1980 do século XX, quando os diversos setores sociais reivindicaram direitos até então negados. Entretanto, a transição política conduzida pelos militares foi caracterizada pelo amálgama entre a ideologia autoritária e os ideais democráticos, de forma que em algumas áreas, como a Segurança Pública, houve uma continuidade institucional, tanto é que, para Sousa (2012), diversas são as fontes que nos dizem que, ainda com os mecanismos de participação estabelecidos no Brasil pela CF/88, o passado autoritário da ditadura militar não se rompeu, sobretudo no interior das instituições policiais.

Dessa forma, faz-se necessário destacar que a Carta Magna preservou o modelo de sistema de Segurança Pública com uma configuração semelhante a implantada durante a ditadura militar, ou seja, a dualidade de Polícia com funções específicas e às vezes contraditórias à nova ordem constitucional. Nesta dualidade, a Polícia Civil ficou responsável pelas investigações criminais que preservaram seu caráter inquisitorial e a Polícia Militar permaneceu atuando na mesma lógica do movimento militarista desde os seus auspícios, com formação e ideologias próprias.

Além das deficiências presentes no modelo anacrônico de Segurança Pública, as políticas neoliberais de ajuste econômico implantadas no Brasil debilitaram a atuação estatal no atendimento às necessidades da maioria da população, num contexto de criminalidade e violência urbana, que afetou mais fortemente a camada social menos favorecida e que reflete em negativos indicativos sociais até os dias atuais na realidade brasileira.

Conforme o relatório “Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, organizado pela Anistia Internacional (2016/2017), dentre as principais deficiências do Brasil quanto às violações de Direitos Humanos, aparecem diversos problemas como: alta taxa de homicídios no país, sobretudo de jovens negros; abusos policiais e as execuções extrajudiciais, cometidas por policiais em operações formais ou paralelas, em grupos de extermínio ou milícias; crítica situação do sistema prisional; vulnerabilidade dos defensores de Direitos Humanos, principalmente em áreas rurais; a violência sofrida pela população indígena, sobretudo pelas falhas em políticas de demarcação de terras e; as várias formas de violência contra as mulheres. O documento informa, ainda, que o Brasil é o país das Américas onde mais se mata defensores dos direitos humanos. Até agosto de 2018, cinquenta e oito ativistas haviam sido assassinados.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2016), a violência contra os direitos humanos e contra os seus defensores, tem provocado uma reação contra os transgressores, informando que 15 Unidades da Federação registraram aumento no número de mortes de policiais de 2015 para 2016, tendo como líder, com 132 mortes, o Estado do Rio de Janeiro, de forma que, a polícia que mais morre é a segunda que mais mata no Brasil, pois figura no topo do ranking da violência como a que mais mata a do Estado do Amapá. Assim, quem vive nesta porção setentrional do país tem quase quatro vezes mais chances de ser morto pela Polícia do que no resto do Brasil.

Estudos preliminares, revelam a grande influência do Exército na formação inicial da Polícia Militar do Estado do Amapá, de forma que pode revelar um elemento elucidativo da letalidade da PMAP, visto que o militarismo opera com a lógica da guerra, cujo principal objetivo é combater o inimigo para salvaguardar a segurança do Estado, mesmo que em prejuízo da cidadania e dos Direitos Humanos, de maneira que em nome da proteção da lei e da ordem, muitas vezes legitima-se o uso arbitrário da força e afasta-se cada vez mais a sociedade dos agentes responsáveis pela preservação do equilíbrio e da paz social.
Segundo Balestreri, em muitas Academias de Polícia (é claro que não em todas) os policiais ainda são “adestrados” para a “guerra de guerrilhas”, sendo submetidos a toda ordem de maus tratos (beber sangue no pescoço de galinhas, ficar em pé sobre formigueiros, ser “afogado” na lama por superior hierárquico, comer fezes, são apenas alguns dos recentes exemplos que tenho colecionado na narrativa de amigos policiais.

A intenção é mostrar uma estreita relação entre a maneira como o policial aborda o cidadão com a maneira como ele foi tratado e preparado em seus Cursos de Formação. Até mesmo porque, na medida em que os comportamentos e valores aprendidos são considerados óbvios, naturais, quase instintivos, a interiorização permite agir sem ser obrigado a lembrar-se explicitamente das regras que é preciso observar para agir, correndo o risco de ter uma atitude dentro daquilo que foi treinado, mas inadequada para o contexto.

Sem querer indicar o caminho a seguir, mas é preciso investir numa formação do policial militar que esteja em consonância com os ditames de uma sociedade verdadeiramente democrática, iluminada pela cultura dos Direitos Humanos, pois o Policial Militar, como nos ensina Balestreri, é solicitado quando o cidadão tem seus direitos violados por outrem, oportunidade em que este agente se transforma em um promotor dos direitos humanos e procura resolver a ocorrência no local da desordem, sem a necessidade de autuação, detenção e/ou condução do cidadão suspeito, utilizando-se de  métodos consensuais de resolução de conflitos e conseguindo, na maioria dos eventos conflitivos, restaurar a paz e o diálogo entre os litigantes, lembrando que o policial não é o julgador de quem merece ou não respeito, mas sim um elemento voltado para a resolução dos problemas de forma pacífica e com vistas a manutenção da ordem pública e do ordenamento jurídico.

Infelizmente, ainda para Balestreri, muitos quarteis da Polícia Militar ainda estão contaminadas pela crença de que a competência se alcança pela truculência e não pela técnica. Alguns superiores hierárquicos ainda ignoram os direitos humanos dos policiais, são arrogantes e tratam seus subordinados com desprezo e humilhação, que acaba refletindo na sua atuação profissional, desenvolvendo um espírito de vingança contra aquele a quem deve proteger. A verdadeira hierarquia só pode ser exercida com base na lei e na lógica, longe, portanto, do personalismo e do autoritarismo doentios. O respeito aos superiores não pode ser imposto na base da humilhação e do medo. Não pode haver respeito unilateral, como não pode haver respeito sem admiração. Não podemos respeitar aqueles a quem odiamos.

Que uma nova perspectiva de Formação, conjugada com uma nova visão da sociedade acerca da atuação policial, venha a ser capaz de evitar tantos corações dilacerados, tantas injustiças cometidas e tantos sonhos interrompidos. Em contrapartida, para evitar que a instituição seja contaminada por atitudes individuais de seus membros, ou até mesmo utilize como desculpa tais ações individuais para ocultar a filosofia da formação, está mais do que na hora de construir mecanismos para que as ações policiais sejam registradas, como já acontece em muitos lugares pelo mundo afora e mesmo em poucos lugares no Brasil. Seria uma forma de proteger melhor o cidadão, ao mesmo tempo que protegeria o agente do Estado, na confirmação da narrativa do confronto.
 
*José Roberto Pantoja é Professor de Filosofia, Advogado, Especialista em Direito Penal e Criminologia e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Amapá.




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